sábado, 25 de março de 2017

Sobre as crianças que não falam

           Como analista de crianças recebo, frequentemente, em meu consultório, crianças em idade de 3, 4, 5 anos que, ainda não falam, ou que têm uma fala absolutamente incompreensível. Normalmente essas crianças vêm com encaminhamento médico com diagnóstico de autismo. O ponto que pretendo destacar é justamente, diagnosticar crianças que não falam como autistas.
            É fato que uma das características de autismo seria uma distinta relação com a linguagem, que pode ser a ausência de oralidade, mas, muitas outras características devem ser consideradas para o diagnóstico do autismo e seria muito simplista articular a ausência de oralidade com o autismo.
            Já atendi muitas crianças com ausência de oralidade, ou que apenas balbuciam algumas palavras, ou que têm uma fala incompreensível, mas normalmente ao atender essas crianças tento não me preocupar com o diagnóstico, mas estar atenta a relação que elas mantêm com a linguagem.
            A infância é o período da aquisição de linguagem, período em que a criança irá sair do mutismo para se deparar com o mundo das palavras. É importante enfatizar que este período não pode ser caracterizado, absolutamente, pelo momento em que o cérebro estará maduro, suficientemente, para a criança começar a falar. Há muitas questões em jogo.
            O processo diagnóstico na clínica psicanalítica se distancia, radicalmente, da clínica diagnóstica médica. Assim, o que pretendo destacar, é a forma como irei lidar na clínica, com uma criança que não fala, em que o diagnóstico não é relevante, tanto quanto a relação subjetiva que a criança irá estabelecer com a linguagem.
            O diagnóstico, para a medicina, pretende reconhecer uma patologia através da identificação de sinais e sintomas, circunscrevendo um quadro nosográfico, que exclui o sujeito da ação diagnóstica. Porém, para a psicanálise, o sujeito deve ser incluído e contribuir para o processo de psicodiagnóstico.
            Devemos destacar também, que as questões psíquicas não se caracterizam apenas dentro de um corpo biológico, ou seja, o cérebro. O diagnóstico, em medicina, considera somente um corpo orgânico, muitas vezes, desconsiderando o sujeito, como se o médico soubesse muito mais sobre o sofrimento do individuo do que ele mesmo.
            Voltando para a questão central desse texto, e as crianças que não falam? Como a psicanálise pode contribuir para essa clínica?
            Para responder de uma forma mais didática, pretendo trazer exemplos de casos clínicos de duas crianças que não falavam. A primeira não tinha qualquer entrada na linguagem, a segunda falava apenas algumas palavras, mas não conseguia construir uma frase, ou se colocar no plano do discurso. A primeira tinha quase três anos quando comecei a atender e a segunda quatro anos.
            A primeira chegou com diagnóstico de autismo. Preferi não atestar o diagnóstico, ficando em suspenso. Inicialmente a criança não falava e não interagia. Posteriormente ela passou a desenhar em sessão, fato este que trouxe muitos progressos para o atendimento. Através do desenho passamos a interagir e estabelecer transferência. Os desenhos passaram a servir de suporte para a criança, parecia que através dos mesmos, ela me dizia algo. Pouco a pouco ela começou a nomear seus desenhos. Algumas palavras começaram a ser pronunciada, a escrita passou a fazer parte dos desenhos e a criança começou a compor histórias em sessão. Como dizer que a criança estava alheia à linguagem? Não, ela não estava, mas a relação que ela estabelecia com a linguagem, era singular. A criança progredia a cada dia e fazer o diagnóstico ficava mais difícil. Com o tempo pude perceber que a criança era autista pela relação que ela estabelecia com a oralidade, pela dificuldade em se estabelecer no plano do discurso, pela forma como colocava verbos, pronomes e sujeito nas frases.
            Atualmente a criança está com dez anos. O plano do discurso está bem mais estabelecido. A criança fala com maior facilidade, conta histórias, fala sobre o cotidiano escolar e familiar. Hoje ela não precisa recorrer mais aos desenhos. Apensar de todos os progressos nesse caso, só tive certeza sobre o autismo há três anos, mas, mesmo assim, nosso trabalho não foi comprometido por isso.
            A segunda criança chegou também com diagnóstico de autismo. Pronunciava algumas palavras, tinha alguns movimentos repetitivos e sempre fazia os mesmos desenhos em sessão. Suspendi o diagnóstico e iniciei meu atendimento com ela. Percebi que, pouco a pouco, a criança passou a se estabelecer no plano do discurso, passou a elaborar frases, contar sobre o cotidiano e durante a sessão não tinha mais um repertório repetitivo. Depois de um ano atendendo essa criança já não posso reconhecer aquela que, anteriormente, entrou em meu consultório e posso afirmar com tranquilidade que não se trata de uma criança autista.
            Mesmo trazendo dois casos distintos, um que considerei autista e outro não, o que podemos destacar é que se tratava de duas crianças com problemas de linguagem, que não conseguiam falar, mas que hoje, ambas, independente do diagnóstico, falam e estão se colocando no campo da linguagem.


Nenhum comentário: