Como analista de
crianças recebo, frequentemente, em meu consultório, crianças em idade de 3, 4,
5 anos que, ainda não falam, ou que têm uma fala absolutamente incompreensível.
Normalmente essas crianças vêm com encaminhamento médico com diagnóstico de
autismo. O ponto que pretendo destacar é justamente, diagnosticar crianças que
não falam como autistas.
É fato que uma das características de autismo seria uma
distinta relação com a linguagem, que pode ser a ausência de oralidade, mas,
muitas outras características devem ser consideradas para o diagnóstico do
autismo e seria muito simplista articular a ausência de oralidade com o
autismo.
Já atendi muitas crianças com ausência de oralidade, ou
que apenas balbuciam algumas palavras, ou que têm uma fala incompreensível, mas
normalmente ao atender essas crianças tento não me preocupar com o diagnóstico,
mas estar atenta a relação que elas mantêm com a linguagem.
A infância é o período da aquisição de linguagem, período
em que a criança irá sair do mutismo para se deparar com o mundo das palavras.
É importante enfatizar que este período não pode ser caracterizado,
absolutamente, pelo momento em que o cérebro estará maduro, suficientemente,
para a criança começar a falar. Há muitas questões em jogo.
O processo diagnóstico na clínica psicanalítica se
distancia, radicalmente, da clínica diagnóstica médica. Assim, o que pretendo
destacar, é a forma como irei lidar na clínica, com uma criança que não fala,
em que o diagnóstico não é relevante, tanto quanto a relação subjetiva que a
criança irá estabelecer com a linguagem.
O diagnóstico, para a medicina, pretende reconhecer uma
patologia através da identificação de sinais e sintomas, circunscrevendo um
quadro nosográfico, que exclui o sujeito da ação diagnóstica. Porém, para a
psicanálise, o sujeito deve ser incluído e contribuir para o processo de
psicodiagnóstico.
Devemos destacar também, que as questões psíquicas não se
caracterizam apenas dentro de um corpo biológico, ou seja, o cérebro. O
diagnóstico, em medicina, considera somente um corpo orgânico, muitas vezes,
desconsiderando o sujeito, como se o médico soubesse muito mais sobre o
sofrimento do individuo do que ele mesmo.
Voltando para a questão central desse texto, e as
crianças que não falam? Como a psicanálise pode contribuir para essa clínica?
Para responder de uma forma mais didática, pretendo
trazer exemplos de casos clínicos de duas crianças que não falavam. A primeira
não tinha qualquer entrada na linguagem, a segunda falava apenas algumas
palavras, mas não conseguia construir uma frase, ou se colocar no plano do
discurso. A primeira tinha quase três anos quando comecei a atender e a segunda
quatro anos.
A primeira chegou com diagnóstico de autismo. Preferi não
atestar o diagnóstico, ficando em suspenso. Inicialmente a criança não falava e
não interagia. Posteriormente ela passou a desenhar em sessão, fato este que
trouxe muitos progressos para o atendimento. Através do desenho passamos a
interagir e estabelecer transferência. Os desenhos passaram a servir de suporte
para a criança, parecia que através dos mesmos, ela me dizia algo. Pouco a
pouco ela começou a nomear seus desenhos. Algumas palavras começaram a ser pronunciada,
a escrita passou a fazer parte dos desenhos e a criança começou a compor
histórias em sessão. Como dizer que a criança estava alheia à linguagem? Não,
ela não estava, mas a relação que ela estabelecia com a linguagem, era
singular. A criança progredia a cada dia e fazer o diagnóstico ficava mais
difícil. Com o tempo pude perceber que a criança era autista pela relação que
ela estabelecia com a oralidade, pela dificuldade em se estabelecer no plano do
discurso, pela forma como colocava verbos, pronomes e sujeito nas frases.
Atualmente a criança está com dez anos. O plano do
discurso está bem mais estabelecido. A criança fala com maior facilidade, conta
histórias, fala sobre o cotidiano escolar e familiar. Hoje ela não precisa
recorrer mais aos desenhos. Apensar de todos os progressos nesse caso, só tive
certeza sobre o autismo há três anos, mas, mesmo assim, nosso trabalho não foi
comprometido por isso.
A segunda criança chegou também com diagnóstico de
autismo. Pronunciava algumas palavras, tinha alguns movimentos repetitivos e
sempre fazia os mesmos desenhos em sessão. Suspendi o diagnóstico e iniciei meu
atendimento com ela. Percebi que, pouco a pouco, a criança passou a se
estabelecer no plano do discurso, passou a elaborar frases, contar sobre o
cotidiano e durante a sessão não tinha mais um repertório repetitivo. Depois de
um ano atendendo essa criança já não posso reconhecer aquela que, anteriormente,
entrou em meu consultório e posso afirmar com tranquilidade que não se trata de
uma criança autista.
Mesmo trazendo dois casos distintos, um que considerei
autista e outro não, o que podemos destacar é que se tratava de duas crianças
com problemas de linguagem, que não conseguiam falar, mas que hoje, ambas,
independente do diagnóstico, falam e estão se colocando no campo da linguagem.
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