A psicanálise encontra
grande resistência, entre profissionais de saúde e pais de autistas, para
tratamento de autistas. Médicos, pais de autistas, profissionais da educação,
recomendam, declaradamente, o não tratamento de crianças autistas com
psicanalistas, argumentam que é perda de tempo. Muito do ódio relacionado à
psicanálise, para o tratamento de autistas, vem de um argumento de que
psicanalistas culpam a mãe pelo autismo da criança. Outro ponto, é que a
psicanálise não irá treinar o comportamento da criança, no sentido da
substituição de comportamentos inadequados por adequados, o que muitos
consideram inapropriado, argumentando que a criança autista, deve adaptar seu
comportamento, para ter um convívio social mais apropriado e digno.
Sou uma psicanalista que atende autistas. Fui apresentada
ao autismo, não pela psicanalise, mas por um menininho que, para sempre, mudou
minha vida. E é a partir da minha experiência com crianças autistas e em
especial, com esse menininho, que me autorizo a falar sobre a relação da
psicanálise e o autismo.
É fato que a psicanálise enfatiza muito a relação mão-bebê.
Isso não tem a ver só com a clínica com autismo, mas com a clínica com crianças
de uma forma geral. O sintoma da criança, na maioria das vezes, tem forte
relação com as demandas parentais e, através do sintoma, a criança responde às
demandas dos pais. Assim, um tratamento psicanalítico com crianças, sempre
convoca os pais, para que, junto com o psicanalista, possam refletir sobre o
sintoma do filho, não no sentido de culpar os pais, mas acima de tudo
responsabilizá-los. A culpa não pode caber no tratamento psicanalítico, pois
àquilo que os pais convocam de seus filhos é inconsciente, então, não podemos
culpar uma pessoa de algo que ela nem mesmo tem consciência de que está
fazendo.
O tratamento com autistas não poderia ser diferente. Os
pais também serão convocados para uma reflexão sobre o que acontece com a
criança, sobre como eles percebem e enxergam o filho, sobre como eles encaram o
autismo da criança. Ter um filho autista é de uma exigência imensa, assim,
acolher a demanda dos pais e escutar as fantasias, desejos, decepções que
circulam diante do filho é de extrema importância.
Como já mencionei fui apresentado ao autismo por uma
criança autista. Na verdade, o diagnóstico de autismo demorou a se impor. A
criança foi encaminhada para tratamento com uma suspeita de autismo, por não
falar, por não fixar o olhar e por ser apegada a objetos. Apesar de todas as
características de autismo, preferi não fechar o diagnóstico, pois a criança só
tinha dois anos e meio. A dificuldade em fechar diagnóstico se tornou ainda
mais árdua, pois no percurso do tratamento, a criança tinha uma melhora
significativa, interagia cada vez melhor, não era mais apegada a nenhum tipo de
objeto, porém a dificuldade da linguagem permanecia, apesar de estar falando
muitas palavras e formulando frases pequenas, ainda tinha dificuldades em
entrar no plano no discurso. O diagnóstico de autismo foi fechado quando a
criança tinha sete anos e meio, por mim e pelo médico.
Durante tantos anos atendendo essa criança e,
posteriormente, atendendo outras crianças autistas, fui percebendo como cada
criança vai encarando e lidando com seu próprio autismo. Esse menininho me
mostrou o quanto ele ia encontrando recursos para enfrentar suas limitações e a
perceber que ele também tinha potencialidades. Sua dificuldade em falar, muitas
vezes, era substituída pela escrita. Assim, ele produzia, durante as sessões,
materiais desenhados e escritos, realmente incríveis. Ele produzia histórias,
construía livros, e dessa forma, ia revelando sua subjetividade para mim. Aos
poucos, o discurso foi melhorando e atualmente ele se coloca, oralmente, muito
melhor, porém, quando tem muita dificuldade e me explicar alguma coisa pede
para mostrar um vídeo na internet para esclarecer o tema. Enfatizo ainda, que a
disponibilidade da mãe com o tratamento da criança, sempre presente nas
entrevistas comigo e sempre buscando pensar e refletir sobre a questão do
filho, foi fundamental para um bom percurso do tratamento.
Uma autista famosa chamada Temple Grandin, através de
seus livros, publicações e palestras, pôde deixar vir à tona a grande
capacidade, muitas vezes, silenciada e escondida dos autistas. Muitas das
conquistas de Temple vieram justamente, por ela ser autista. Temple Grandin tem mestrado e doutorado em zoologia e mais de
quatrocentos artigos publicados em sua área de especialização. Para quem se
interessar por essa história fantástica, existe um filme sobre a vida de Temple
Grandin, cujo título é seu nome próprio.
Encerrando o artigo cito outra autista chamada Carley Fleischmann,
que também escreveu um livro. Até a adolescência Carley não emitia nenhuma
palavra. Os parentes de Carley desconheciam o fato de que ela sabia escrever,
até que, um dia, ela deixou uma mensagem no computador com as palavras “dor” e
“ajuda”. A partir desse dia Carley nunca mais deixou de escrever e, escreveu um
livro com a ajuda do pai. Sobre sua experiência, Carley diz: “O autismo me
trancou em um corpo que eu não posso controlar”, e ainda: “As pessoas têm muita
de suas informações vinda dos chamados especialistas, mas eu acho que esses
especialistas não conseguem dar uma explicação a algumas questões”. *
Carley nos ensina que os autistas devem ser escutados, ou
lidos, já que a maioria deles tem facilidade em escrever do que falar.
Independente da especialidade que irá tratar um sujeito autista é digno que ele
possa fazer parte do tratamento, de modo que se expressem e participem
ativamente. Assim, a psicanálise é um
tratamento possível para autistas? Enquanto possibilitar um espaço em que o
sujeito autista posso se colocar e expressar, acho que a psicanálise tem um
papel determinante.
Os
autistas têm muito a nos ensinar...
*As
falas de Carley foram retiradas de um blog da revista Super Interessante: http://super.abril.com.br/blogs/como-pessoas-funcionam/entenda-e-experimente-como-funciona-a-mente-de-um-autista-com-a-ajuda-de-uma-adolescente-que-sofre-dessa-condicao/