sábado, 25 de março de 2017

O desfralde e a relação da criança com o corpo

          Um dos momentos mais tensos para as mamães é o momento do desfralde. Muitas mães, vão ao consultório, angustiadas com o fato de a criança fazer xixi ou cocô na calça. A situação mais comum é a criança que faz xixi na cama e a criança que se recusa a fazer o cocô no peniquinho ou no vaso sanitário, fazendo na fralda.
            A criança nasce com o sistema nervoso incompleto, no qual só estará realmente terminado por volta dos dezoito meses, assim sendo, a criança só conseguirá ter o controle sobre os músculos voluntários após esse período. Françoise Dolto (pediatra e psicanalistas de crianças), afirmou em seu livro “Etapas decisivas da infância”, que uma criança possui o domínio de seus músculos voluntários quando pode subir e descer sozinha uma escada.
            Podemos considerar que a criança estará preparada para o desfralde por volta dos dois anos de idade. Nesse momento ela passa a ter maior controle sobre os músculos voluntários de seu corpo e dessa maneira, a possibilidade de controle esfincteriano se faz.
            O grande impasse do desfralde se faz justamente no instante em que a mãe deve abrir mão do corpo de seu bebê. Aquele pequeno corpinho já não lhe pertence mais e ali habita um sujeito que já pode controlar o momento em que irá fazer suas necessidades, assim, o desfralde implica em um descolamento da mãe. Referi-me a esse momento como um impasse, porque, ao mesmo tempo em que as mães querem que a criança saia das fraldas, elas não querem abrir mão desse corpo que, em certa medida, sentem que lhes pertence.
            O desfralde implica em um voto de confiança à criança: “vá, você consegue fazer isso sozinho, sei que você pode falhar algumas vezes, mas a falha faz parte”. Esse “afastamento” da mãe autoriza a criança a lidar com seu próprio corpo, implicando em um desfralde mais tranquilo. A mãe que tem dificuldades em fazer isso pode dificultar o desfralde de seu filho. A mãe que coloca excessivamente disponível para a criança, que tenta controlar o momento que a criança vai fazer as necessidades, que se irrita quando a criança faz xixi ou cocô na calça, em suma, que se faz muito presente não oferece espaço para que a criança lide com o próprio corpo e por consequência a criança continua usando fraldas.
            Noto que algumas crianças que usam fralda são extremamente apegadas as mães, têm dificuldades de se afastar delas, entretanto esse cenário só se impõe, porque o contrário também é verdadeiro, a mãe tem dificuldade de se afastar do filho. Assim, inconscientemente, eles fazem um pacto de união e usar fraldas implica, simbolicamente, ter o corpo dominado pela mãe, desse modo se impõe o conflito para mãe e criança.
            O momento do desfralde é o momento em que a criança passa a lidar e ter o controle sobre o próprio corpo, então é importante que ela possa ter um espaço físico e principalmente emocional para que isso ocorra de forma tranquila.
            Fecho esse artigo com uma citação de Françoise Dolto:
“Eu gostaria de tentar compreender o processo obscurantista mantido de mãe para filha, que conduziu nossa civilização ocidental, há cerca de um século, a essa atitude perversa e perversora na educação das crianças pequenas, atitude dita educadora, à qual se deu inclusive a referência animal de ‘adestramento’. Essa palavra conota bem a referência animal a qual se associa o estado de bebê e a alimentação da criança humana ao desejo soberano do adulto tutelar, que a trata como objeto de funcionamento, outorga-lhe um estatuto implícito de escravo e nega-lhe a priori um estatuto de homem ou mulher que advém a liberdade de seu corpo no domínio experiente da satisfação de suas necessidades, e não a apoia para delas distinguir seu desejo e para expressá-lo com palavras autênticas, quando sua evolução física lhe der meios para isso”.  *

*Dolto. F (1999) As etapas decisivas da infância. São Paulo: Martins Fontes.

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